Libertinagem, MANGUE

Libertinagem, MANGUE
Manuel Bandeira

Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo crusvaldina com resíduos de coque
Há macumbas no piche
Eh cagira mia pai
Eh cagira
E o luar é uma coisa só

Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do
[que todas as Meritis da Baixada
Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições
[públicas
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da Rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avul-
[sivas
O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam
[com rancor
(Por isso
Entre os dois
Dom João VI plantou quatro renques de palmeiras impe-
[riais)
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcio-
[nário público casado com mulher feia
[e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num pín-
[caro azulado.
Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carna-
[vais cariocas
Sambas da Tia Ciata
Cadê mais Tia Ciata
Tavez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças para o Natal
O menino Jesus - Quem sois tu?
O preto - Eu sou aquele preto principá do centro do
[cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?
O menino Jesus - Eu sou o fio da Virge Maria.
O preto - Entonces como é fio dessa senhora, obedeço.
O menino Jesus - Entonces cuma você obedece, reze
[aqui um terceto pr'esse exerço vê.
O Mangue era simplesinho

Mas as inundações dos solstícios de verão
Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da Serra da Ca-
[rioca
Uiaras do Trapicheiro
Do Maracanã
Do Rio Joana
E vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressada
[nos aterrados da Gamboa
Hoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
O Senador e o Visconde arranjaram capangas
Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém
[acreditava
E há partidas para o Mangue
Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco
És mulher
És mulher e mais nada